Ovelhas, Bodes e O Programa Social da Igreja: Uma Interpretação de Mateus 25:31–46

Ovelhas, Bodes e O Programa Social da Igreja: Uma Interpretação de Mateus 25:31–46


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Anton Petrishchev, PhD, iniciou o ministério pastoral em 1999 na Bielorrússia. Trabalhou como editor-chefe na Casa Publicadora Fonte de Vida, na Rússia, e desde 2013 trabalha como vice-presidente na Administração Acadêmica da Zaoksky Adventist University, Zaoksky, Tula, Rússia. O Pastor Anton Petrishchev graduou-se Bacharel em Teologia em Zaoksky, Mestre em Religião pela Andrews University e PhD em Novo Testamento pela AIIIA (Adventist International Institute of Advanced Studies) nas Filipinas. Petrishchev é casado com Svetlana e pai de dois filhos: Nikita (12) Mikhail (5).


Tradução: Hugo Martins

O artigo “Ovelhas, Bodes e Programas Sociais da Igreja: Uma Interpretação de Mateus 25:31–46” (Original em inglês: Sheep, goats, and social programs of the church: An interpretation of Matthew 25:31–46), Антон Петрищев (Anton Petrishchev), fora publicado, inicialmente, em agosto de 2016 na revista Ministry,® International Journal for Pastors, www.MinistryMagazine.org.  Usado com permissão.


Muitos veem Mateus 25:31–46 como um chamado para os cristãos servirem as necessidades do mundo. “Ovelhas” são os seguidores de Jesus que praticam obras de misericórdia. “Bodes” são pessoas, incluindo aquelas que pretendem seguir a Jesus, que se recusam a servir o necessitado.[1] Baseamos tal entendimento, particularmente, na identificação de Deus como o Pastor de Israel em Ezequiel 34:13–22. O juízo descrito por Ezequiel e iniciado pela injustiça social para com o fraco é um juízo local limitado ao rebanho de Deus; Isto é, o povo de Israel.[2] Portanto, pode se supor que a parábola conta a respeito de um programa social do cristianismo direcionado a ajudar os necessitados. E aqueles cristãos que se recusam a tomar parte neste programa põem em perigo seu destino eterno.

Sem rejeitar esta agradável e plausível interpretação, vamos analisar um outro possível significado de Mateus 25:31–46.

O Contexto da Parábola

Mateus 25:31–46 termina uma seção que começa em 24:1 com a predição da destruição do templo de Jerusalém e os discípulos perguntando acerca dos sinais de Seu retorno e o fim do mundo. Mateus 24 e 25 proveem a resposta de Jesus à questão.[3]

Esta seção enfatiza a natureza universal dos eventos descritos. Enquanto é possível compreender a destruição de Jerusalém e do Templo como uma calamidade local, Jesus quer direcionar ao contexto mais amplo dos eventos futuros[4] usando a expressão “todas as nações.” Ele alerta aos discípulos, portanto, acerca da oposição global que eles enfrentarão: “Vocês serão odiados por todas as nações por minha causa” (Mt 24:9),[5] e ele conta sobre o caráter universal da missão deles: “E este evangelho do Reino será pregado em todo o mundo como testemunho a todas as nações” (Mt 24:14).

Mateus 24 descreve, então, eventos que tomarão lugar antes do advento, assim como durante o advento em si. A descrição da Segunda Vinda em Mateus 24:30–31 inclui os seguinte elementos: (1) Jesus como o Filho do Homem, (2) grande glória, (3) anjos, (4) reunião dos eleitos, e (5) menção a “todas as nações da terra,” que é um paralelo conceitual para a expressão “todas as nações” nos versos 9 e 14.[6]

A próxima parte da seção conta acerca dos eventos próximos à Segunda Vinda e pode ser dividida em introdução (Mt 24:32–44) e em quatro parábolas (Mt 24:45–25:46), que possuem elementos paralelos. Todas elas descrevem a recompensa do justo e o destino do ímpio na Segunda Vinda.

Juízo Universal

Em Mateus 25:31–36, o tema de “todas as nações” reaparece. A expressão panta ta ethne é usada, novamente, em Mateus 25:32. Juntamente, em Mateus 25:31–32, os elementos-chave do Advento são encontrados, que já tinham sido observados em 24:30–31: (Jesus chama a Si mesmo de o Filhos de Deus, (2) Ele fala acerca da vinda em glória, (3) Ele está acompanhado pelos anjos, (4) e Ele fala acerca de “reunir” todas as nações. Assim, um tipo de inclusio é formado, que enfatiza que a humanidade como um todo participa nos eventos descritos.

Parece, portanto, que Mateus 24:32–25:46 diz acerca de um juízo universal que se relaciona não apenas aos crentes que aguardam a Segunda Vinda, mas, também, especialmente, a toda a humanidade. A ideia de universalidade é fortalecida pela repetição do título “Filho do Homem,” que, por sua vez, se refere a Daniel 7:13–14,[7] onde o Filho do Homem recebe “autoridade, glória e o reino” sobre “todos os povos, nações e homens de todas as línguas. Mateus 24:25–46:24 contém, portanto, uma resposta de “todas as nações” à pregação do evangelho (ver Mt 32:14) e as consequências dessa resposta: aqueles que aceitam o evangelho são recompensados; aquele que se recusam são punidos.[8]

Personagens da Parábola

O próximo passo importante é identificar os personagens da parábola. Eles são: (1) o Filho do Homem (o Rei), (2) ovelhas, (3) bodes, (4) o menor dos irmãos do Rei. Pode-se, facilmente, identificar o Filho do Homem, mas os outros requer alguma investigação.

Ovelhas. Como visto do verso 32, “ovelhas” pertence, originalmente, a “todas as nações.” O Rei nomeia as “ovelhas” como “benditos de meu Pai” e convida-lhes a herdar o reino preparado “desde a criação do mundo” (v. 34); juntamente, eles são, também, chamados de “justos” (vv. 37, 46). Podem todas essas características ser aplicadas àqueles que não pertencem ao povo de Deus, mas que representam “todas as nações”?

A expressão benditos de meu Pai pode ser uma referência a Gênesis 12:3 (cp. Nm 24:9), onde Deus promete abençoar aqueles que abençoarem a Abrão, isto é, fazer o bem a ele, e a frase “todos os povos da terra” mostra que os gentios estão, também, inclusos. Por sua vez, o convite para herdar “o reino preparado . . . desde a criação do mundo” é, possivelmente, um eco de Gênesis 1:28, onde Deus abençoou as primeiras pessoas e, por meio delas, a humanidade inteira e lhes deu autoridade sobre toda criação. E, agora, representantes de “todas as nações” são convidados a bênção da governança real dada à humanidade na criação.[9]

O termo justo não contradiz o fato que as “ovelhas” na parábola vêm de “todas as nações.” Justiça é, frequentemente, definida como obras de misericórdia (ver Jó 22:6–9; Is 58:6–7; Ez 18:6–9). De acordo com esta definição, até mesmo os gentios podem ser declarados justos se eles praticam a justiça.[10]

Muito embora “ovelhas” seja um símbolo bíblico comum para o povo de Deus, é, algumas vezes, aplicado a outras nações. Assim, Jeremias 51:40 diz acerca de Babilônia: “Eu os levarei como cordeiros para o matadouro, como carneiros e bodes.” Símbolos similares e o contexto do juízo sobre os gentios ligam este texto à passagem estudada.

Bodes. Representantes de “todas as nações” chamados de “bodes” na parábola são, também, chamados de “malditos” (Mt 25:41). O verbo kataraomai, “amaldiçoar”, é usado no grego de Gênesis 12:3 em contraste com eulogeo, “abençoar”. Assim como Deus abençoa os gentios que fazem o bem a Abraão, Ele amaldiçoará aqueles que “amaldiçoam” Abraão, isto é, fazer o mal a Abraão.[11]

Gênesis 12:3 parece, portanto, ser um texto importante para a interpretação de Mateus 25:31–46 porque ambas as passagens compartilham paralelos verbais e conceituais. No caso de Abraão, os gentios serão, obviamente, abençoados ou amaldiçoados baseados em sua atitude para com o patriarca e a sua família.

O menor. Identificar “o menor” em Mateus 25:40, 45 é, também, muito importante. As quatro interpretações mais comuns identificam-lhe com (1) todos os necessitados, (2) os judeus, (3) os apóstolos, ou (4) os cristãos em geral.[12]

Em Mateus 25:40, o Rei fala do “menor” como Seus irmãos. Em outra parte, em Mateus, Jesus fala dos Seus irmãos[13] como aqueles que fazem a vontade do Pai Celestial (Mt 12:49–50).[14] Essa característica do “menor” como os irmãos de Jesus permite sua identificação como os cristãos.

A expressão “a algum dos meus menores irmãos” deve ser interpretada no contexto de Mateus 10.[15] Esse capítulo compartilha vários paralelos com Mateus 24, dentre os quais então a pregação do evangelho, perseguições, testemunho aos gentios, ódio do povo, a vinda do Filho do Homem e traição por parentes. Quando Jesus enviou Seus discípulos ao ministério, Ele ordenou a eles não levarem qualquer dinheiro, alimento ou roupas (Mt 10:9–10), fazendo, assim, eles dependerem da ajuda daqueles a quem ele pregam, assim como em Mateus 25:31–46. O final de Mateus 10 se assemelha a última parte de Mateus 25—em ambos os casos. Jesus identifica a Si mesmo com “o menor”: “Quem recebe vocês, recebe a mim; . . . E se alguém der mesmo que seja apenas um copo de água fria a um destes pequeninos, porque ele é meu discípulo, eu lhes asseguro que não perderá a sua recompensa” (Mt 10:40–42).

Dar um copo de água para “um destes pequeninos”[16] significa “receber” um discípulo; e Jesus repete uma ideia similar em Mateus 25: “O que vocês fizeram a algum dos meus menores irmãos, a mim o fizeram.” Por outro lado, aqueles que se recusam a receber os discípulos de Jesus receberão punição no dia do juízo (Mt 10:14–15), assim como aqueles que não ajudaram “um destes pequeninos” (Mt 25:41–45). Parece, portanto, que a identificação de “o menor” como os discípulos de Jesus é possível.

Igreja e Sociedade no Contexto de Mateus 25:31–46

Se concordarmos que “ovelhas” e “bodes” são representantes de “ todas as nações,” isto é, a humanidade em geral, enquanto o “menor” são os seguidores e ministros de Cristo, torna-se evidente, então, que o texto diz, aqui, não tanto da igreja servindo a sociedade e implementando certos programas sociais, mas, mais comumente, acerca da sociedade servindo os mensageiros do evangelho e satisfazendo suas necessidades.[17] Isso não significa que a igreja não deva servir a sociedade; de fato, “há uma abundância de outros textos que ordenam, claramente, uma preocupação prática para com os necessitados e os marginalizados da sociedade.”[18]

Tal como a parábola, torna evidente que a igreja pode servir a este mundo e preparar-se para a Segunda Vinda dando a sociedade uma possibilidade de servir os Cristãos. O significado da parábola pode ser expressado do seguinte modo: cada pessoa pode se tornar uma parte da família de Jesus se eles respondem a proclamação do evangelho e tratam os discípulos de Cristo como irmãos e irmãs.

Todavia, a interpretação acima assume que “o menor” são uma grupo separado de pessoas, diferente das “ovelhas” e dos “bodes” , e tendo, portanto, nada em comum com “todas as nações.” Tal entendimento pode ser baseado em Mateus 24:9, onde “todas as nações” está posta em contraste com os discípulos. Ademais, não há nada em Mateus 25:31–46 que apresente, explicitamente, “o menor” como um terceiro grupo em adição a “ovelhas” e “bode.” Ao mesmo tempo, alguma evidência bíblica pode ser provida em favor de identificar “os menores” como “ovelhas” e, consequentemente, uma parte de “todas as nações.” Esta ideia é encontrada em textos tais como Isaías 66:18–20 e Ezequiel 34:11–22. Falando sobre “o menor” de Seus irmãos, Jesus pôde incluir em seu número alguns representantes de “todas as nações” que não eram conhecidos como os seguidores de Jesus, mas era, ainda, parte da “igreja invisível.” Portanto, pessoas de “ todas as nações” podem, também, estar entre “o menor” e esperar algum cuidado e ajuda enquanto precisarem. Do mesmíssimo modo, “o menor”, sendo parte da sociedade, pertence a “todas as nações” e compartilha, portanto, com eles a responsabilidade de expressar misericórdia e compaixão.[19]

Cristo não põe a igreja em oposição a sociedade, ou a sociedade em oposição a igreja. Ele demonstra nossa responsabilidade, como membros da sociedade, aos Seus—e nossos—irmãos e irmãs espalhados neste mundo. A parábola da ovelha e dos bodes mostra ser necessário a todos, sem consideração de sua relação com a comunidade cristã, responder à proclamação do evangelho em ajudar os membros necessitados da igreja invisível do Senhor.


Notas

[1] Edward Schweizer, “Matthew’s Church,” em The Interpretation of Matthew, ed. G. Stanton (Philadelphia: Fortress, 1983), pp. 138–139; Joseph A. Grassi, “I Was Hungry and You Gave Me to Eat (Matt. 25:35ff): The Divine Identification Ethic in Matthew,” Biblical Theology Bulletin 11 (1981): pp. 81–84.

[2] Leslie C. Allen, Ezekiel 20–48, Word Biblical Commentary, vol. 29 (Dallas: Word, 2002), p. 163.

[3] De acordo com Donald A. Hagner, a questão do discípulo serve como uma introdução para o discurso seguinte. Ver Hagner, Matthew 14–28, Word Biblical Commentary, vol. 33B (Dallas: Word, 2002), p. 687.

[4] Cp. Ellen G. White, O Desejado de Todas As Nações, p. 628.

[5] Todas as referências bíblicas são da Nova Versão Internacional.

[6] Mateus, expande, aqui, o significado original de Zacarias 12:12 para torná-lo universal. Cp. John Nolland, The Gospel of Matthew: A Commentary on the Greek Text (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2005), p. 984.

[7] Cp. Craig Blomberg, Matthew, The New American Commentary (Nashville: Broadman & Holman Publishers, 2001), p. 362.

[8] “Para Mateus, então, a conversação que Jesus tem com todas as nações no juízo final foca-se no modo como a humanidade tem respondido a Jesus na pessoa de seus discípulos. . . . Agora, o cenário é cosmológico, pressupondo a resposta de todos os povos da terra à missão universal dos discípulos descrita em 28:18–20 (cp. 24:14),” Richard B. Gardner, Matthew: Believers Church Bible Commentary (Scottdale, PA: Herald Press, 1991), p. 359.

[9] William D. Reyburn and Euan M. Fry, A Handbook on Genesis, United Bible Societies’ Handbook Series (New York: United Bible Societies, 1997), p. 274.

[10] Cp. Ellen G. White, O Desejado de Todas As Nações, p. 638. É interessante, também, destacar um paralelo com Romanos 2:9–16.

[11] Ver Gordon J. Wenham, Genesis 1–15, Word Biblical Commentary, vol. 1 (Dallas: Word, 2002), p. 277.

[12] Para uma discussão detalhada, ver James M. Boice, The Gospel of Matthew (Grand Rapids, MI: Baker Books, 2001), p. 540.

[13] Gardner, Matthew, p. 359.

[14] O mesmo pensamento pode ser encontrado em Hebreus 2:11.

[15] Hagner, Matthew 14–28, p. 745.

[16] Não há diferença essencial entre ton mikron em Mateus 10:42 e ton elachiston em Mateus 25:40, 45, em vista da última forma ser a superlativa da primeira. Cf. William Arndt, Frederick W. Danker, and Walter Bauer, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature, 3ª ed. (Chicago: University of Chicago Press, 2000), p. 314.

[17] A comissão em Mateus 10:1, 8 implica não tanto na realização de uma ordem social, mas, em vez disso, fazer milagres que confirmariam que “Reino dos céus está próximo” (Mt 10:7) e que aos discípulos fora, realmente, dada autoridade (exousia) especial (10:1). Cp. G. Jerome Albrecht and Michael J. Albrecht, Matthew, The People’s Bible (Milwaukee, WI: Northwestern Pub. House, 1996), p. 149. Ver, também, a resposta de Jesus a João Batista em Mateus 11:2–6.

[18] Larry Chouinard, Matthew, The College Press NIV Commentary, edição eletrônica (Joplin, MO: College Press, 1997), s.v. Mateus 25:40. É, também, interessante que Lucas, o mais “social” dos Evangelhos, falta esta parábola.

[19] Cp. Ellen G. White, O Desejado de Todas As Nações, p. 638.

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